IBAR – Instituto Brasileiro de Análise Reichiana
Ode à Amizade!
Topam ouvir uma história? Eu sou uma mulher do cerrado, que gosto de contar histórias. Lá no cerrado, as histórias eram bálsamos para todos os males. E a gente só tinha que ouvir, com o coração bem aberto.
Cura tudo. Desanimou? Assustou? Quer achar a alegria que você perdeu não sei onde? Arrume uma fogueira, dentro de você, sente-se com muita calma, e escute uma história.
Então escute essa, uma história muito nossa, curadores e bruxos que agora somos chamados de cientistas e analistas reichianos!
Viva!
Em 1994, formava-se a primeira turma de psicoterapeutas em Vegetoterapia Caractero-Analítica no Brasil, pela Sovesp – Sociedade de Vegetoterapia de São Paulo.
O texto que vou ler agora, é o discurso de formatura que fiz para aquela primeira turma. Decidi lê-lo aqui hoje para vocês, de novo, porque vocês são os herdeiros desta tradição, a segunda turma a se formar em Análise Reichiana, a Quarta Geração desta ilustre família, e desta vez, pelo IBAR – Instituto Brasileiro de Análise Reichiana.
Neste momento tão especial do Brasil e do planeta, cresce em nós, herdeiros de Reich, a esperança e o esforço de vivermos, convivermos, a partir do melhor de nós, de uma meta-consciência que alcance e irradie neguentropia entre nós e para toda a humanidade.
Naqueles idos de 1994, na Serra da Cantareira, o dia amanheceu iluminado e a casa de Maria Alice Vassimon, nossa querida amiga e companheira reichiana, nos acolhia e se fazia cenário adequado, cheio de beleza e carinho, de um momento significativo para todos nós
Dias antes da formatura, eu tive um sonho que me fez rasgar o texto que eu havia escrito para ler na cerimônia. Acordei "luminada", pela luz de amor que o sonho irradiava.
E o sonho era assim:
“Eu, Maria Alice e Yvonne, a equipe da época, estávamos a caminho da cerimonia de formatura. A um certo momento, estacionamos o carro e fomos dar uma voltinha por alí. De repente, avistei um lugar que me fez parar, extasiada. Eu acabara de descobrir exatamente o que é que eu queria dar aos alunos como diploma, na cerimônia de formatura."
Eu estava numa calçada de um hotel. Esta calçada era como um grande painel, uma belíssima obra de arte, toda construída em pedras. Utilizando as pedras por suas cores e formatos, o artista delineara a paisagem de uma noite estrelada. Havia lá umas pedrinhas especiais que, pelo seu formato, tamanho e cores, eram perfeitas para representarem no cenário, as estrelas da noite estrelada. Eram lindas! Tive sorte de achar logo ali, no chão, alguns exemplares.
Peguei-as e coloquei-as na palma de minha mão. Ali, na palma de minha mão, elas perderam o encanto da visão do todo e me pareciam pequeninas demais, embora ainda conservassem a beleza da forma e das cores.
Receei que, talvez, olhando-as assim na palma de minha mão, Maria Alice e Yvonne não fossem entender o símbolo, a beleza delas como símbolo daquela noite estrelada. Mas, pensei, eu vou explicar muito bem e elas entenderão. Corri para elas e expliquei:
- É isto que quero dar para eles, para os alunos, na cerimônia de formatura!
- É... uma pedra estrelinha...
- Olha, é o seguinte: nós todos vamos nos separar depois da formatura. Mas cada um de nós levará uma pedrinha, e sempre que a virmos ou pensarmos nela, nos comprometemos a lembrar do nosso grupo e do sonho do nosso grupo. Cada pedra faz parte de um conjunto, do céu estrelado. Seremos uma confraria. Sagrada. Cada um será guardião do sonho do grupo. Em cada coração o sonho está plantado. Quem viver, o leva adiante, por si e pelos que não conseguirem continuar e tiverem esquecido o sonho. E o sonho é aquele que Yvonne falou ontem, na reunião:
Curar a dor humana. Jamais aumentá-la. Largar qualquer coisa que tiver se desvirtuado por força da limitação humana e recomeçar a buscar a água cristalina do poço que alimenta e nutre. Vigiar para não deixar apodrecer, conspurcar, envenenar a água do nosso poço. Este é o nosso juramento sagrado.
A pedra estrelinha, não nos deixará esquecer. E se um dia tivermos esquecido tudo, tudo, ela nos tocará de novo o coração. Se esquecermos tudo, e já nem mesmo nos lembrarmos que somos amigos, mesmo assim, a pedra estrelinha, juramos não esquecer.
Acordei.
De chofre, me lembrei de um dia da minha infância. A lembrança veio viva, as cores e os cheiros daquela tarde, minha última hora no sertão. Dali a pouco, o trem maria-fumaça levaria toda minha família para São Paulo. Três dias e três noites de viagem, e um preço inacessível para a nossa pobreza. Vendêramos tudo que tínhamos na vida para pagar a passagem e nos sustentarmos por uns quinze dias na capital, que era como chamávamos São Paulo. O resto, só Deus sabia. Íamos em busca de nosso destino, sem passagem de volta.
Era hora da Ave-Maria.
O sino da capelinha tocou, encerrando o dia.
Num gesto distraído, as pessoas faziam o ritual usado no lugar. Os homens tiravam o chapéu. E todos, fechavam os olhos por um momento, juntavam as mãos, num gesto de oração, e faziam o sinal da cruz. E recomeçavam a conversa do cotidiano do fim de dia.
A tarde morna nos envolvia, e as sombras iam entrando devagar, trazendo a noite. Sem luz elétrica, a chegada da noite era majestosa. As estrelas iam chegando, silenciosamente, cada uma ocupando seu lugar para a vivência daquela noite.
Para mim, aquela seria uma noite especial. Eu tinha sete anos. E pela primeira vez, as estrelas não me encontrariam lá. Eu não estaria lá.
Olhei em torno, e percebi que um mundo se encerrava para mim.
A tarde morna me envolvia. Tudo parecia perfeito, pleno
Senti que eu precisava levar dentro de mim aquela tarde, e em algum lugar, guardar comigo a noite de lá: o céu majestoso, os sons dos adultos de cócoras contando “causos” sob a luz da lamparina, as brincadeiras noturnas...
Como levar esta plenitude, esta pureza?
Como levar as crianças pulando corda, o esconde-esconde, e, no final, mamãe contando histórias e papai contando “causos verdadeiros” (mas nem tanto!) de suas andanças na noite encantada e às vezes mal assombrada do cerrado?
Ao meu lado, estava o símbolo maior daquele mundo: Zú. Uma pretinha de sete anos, minha idade. Minha primeira amiga. Ela riu de novo sua risada cristalina. De novo alguém a mandou ficar quieta: “Pretinha enxerida que não pára de mostrar estas canjicas!”. Canjicas era alusão aos dentes brancos reluzindo na carinha preta.
Olhei em torno, tentando colocar dentro de mim a essência daquele lugar, e levar comigo para a cidade grande, São Paulo, fria e dura, que engole as almas, como eu ouvira falar.
De repente, percebi como fazer isto. Peguei Zú pelas mãos, olhei nos seus olhos que só sabiam rir e brincar, e a fiz ficar séria:
– Zú, você acha que a gente vai esquecer uma da outra?
– Acho que vai. As pessoas quando crescem, se esquecem. A gente nunca mais vai se ver! Disse ela, com sua habitual pureza cruel.
– Então, vamos fazer uma coisa que a gente vai jurar por Deus que nunca vamos esquecer. Mesmo que a gente esqueça tudo, tudo, a gente vai jurar que nunca vai esquecer o que vamos fazer agora. Quer fazer isto?
– Quero.
– Mas é jurar por Deus, certo? Tem castigo mesmo, se a gente quebrar a jura, certo?
– Tá bom!
Eu fui a sacerdotisa. E juramos:
Juro,
que nunca me esquecerei que hoje,
no último dia que passei em Curvelo,
na hora da Ave-Maria,
dei a mão a Zú,
minha melhor amiga,
e que,
de mãos dadas,
demos três passos à frente,
paramos em frente do pé de manga,
e, de mãos dadas,
nos agachamos,
pegamos este galhinho de milho-de-grilo,
e que eu comi um,
e dei um para Zú.
Juro por Deus,
e pela vida de minha mãe,
que mesmo que eu me esqueça de tudo,
nunca me esquecerei disto.
Por um momento, Zú parou de rir, e jurou solene. E choramos.
E aí eu pude deixar Curvelo mais sossegada. Levava uma marca dentro de mim, um novo fractal!
Naquele dia, eu pensei que eu nunca mais iria retornar àquele mundo.
Mas retornei. Sete anos depois.
Eu e Zú tínhamos quatorze anos.
Meu coração quase parou quando a vi de novo.
Eu não me esquecera de nada, e nem do juramento. Nem do meu amor por ela e pela noite estrelada do meu sertão.
E ela, se lembraria, ou quebrara o juramento?
– Você se lembra, Zú, de nosso juramento?
Ela riu de novo, seu mesmo riso cristalino, mostrando as canjicas, com a mesma alegria contagiante.
Ela não se lembrava!
E eu, eu a perdoei.
Talvez porque vi que ela ainda guardava a risada cristalina, a maestria de roubar mangas na casa do Zé dos Anjos, de subir no pé de cajú, e de mexer com as entranhas de toda gente com sua alegria contagiante. Ela ainda era uma estrela na noite do cerrado. Nem precisava se lembrar!
Alguns anos depois, quando nós duas íamos fazer dezoito anos, Zú morreu de doença de Chagas. Os bichinhos de Chagas pregaram-lhe uma peça. Talvez para testar seu bom humor! A mim, que convivi com os morcegos tanto quanto ela, os bichinhos pouparam. Fui escolhida para continuar viagem neste mundo.
Zú é a essência da infância e não poderia mesmo ir além dela! Não sofreria as tentações dos adultos, a cobiça, o risco de esquecer a retidão das estrelas, a verdade do sertão. Ela era o sertão.
Compreendi porque era eu mesma que tinha que lembrar do juramento. Eu é que vim para São Paulo. Eu é que tinha a missão de trazer meu sertão para a cidade de pedra.
A pedra-estrela do sonho de hoje é como aquele juramento. Um compromisso vindo da essência de cada um, de nunca trair o que há de melhor em nós. E de cada um fazer sua parte, ocupar seu lugar no céu e juntos compormos uma noite iluminada que envolve a humanidade com uma luz morna, sagrada. Nunca deixar apagar uma presença de luz na noite humana, transformar a escuridão em beleza e em sagrado.
Juro,
que serei com vocês,
com cada um de vocês que hoje se formam no IBAR,
e todos os que quiserem preservar a pureza do poço,
que nunca esquecerei que sou parte desta confraria
secreta e sagrada.
Amém.
E assim, meu coração está feliz porque consegui trazer Zú para nossa turma. Sou testemunha de que ela viveu o juramento em cada minuto do seu cotidiano. Eu fui a teórica de nossa praxis. Ela é a minha homenageada de honra deste momento que comemoro em minha vida, do qual esta segunda turma do IBAR, e vocês, Bia, Cuca, Mary Jane e nosso querido mestre, Gino, é parte integrante.
Bem-vindos todos à confraria Sertão-Planeta Terra, que tem por finalidade religar o homem civilizado às suas origens, ao seu cerne.