Percursos
O cerrado
Nasci em Curvelo, em Minas Gerais. Até meus 8 anos meu mundo era o cerrado mineiro, seus mistérios, sua beleza agreste, inusitada, seus cheiros e cores ensolarados, o calor e a luz do sol penetrando tudo, inclusive minha alma. E um povo. Uma grande família que me deu um chão. Como o do cerrado. Algo de duro, sofrido, como um pé de pequi, rasgando o solo ressecado com a paciência de quem tem pressa de ter solidez, tem fome de vida e vai buscá-la com garra, sabendo-a preciosa.
O pequizeiro leva cerca de cem anos para dar frutos. Mas entrega ao mundo um fruto precioso. Mais proteína num só pequi do que num grande bife paulista, disse uma pesquisa de peso numa certa época.
Quando olho um pequizeiro erguendo-se ao céu, retorcido, contando, em sua forma, sua história de força e persistência para vencer as dificuldades que o solo árido lhe apresentou, eu me emociono. Sinto-o meu irmão.
Quando caminho sob o sol ardente, que já me esgota, tenho saudade de sua sombra que aparece lá longe, quase um milagre, um oásis, sinto-o mãe e pai. E quando ouço dizer que os homens hoje já não respeitam seus cem anos de idade, a generosidade com que me alimentou na infância, a bondade com que tem tratado os humanos, que o cortam para fazer carvão, eu ainda choro.
São Paulo
Assim cheguei a São Paulo, aos 8 anos, trazendo na alma o calor do cerrado e de seu povo bondoso, sofrido, solidário. Deixei lá um mundo, todo o meu mundo conhecido. Um parto.
Desembarquei na Estação do Norte; vim com pai, mãe, muitos irmãos, sacos nas costas, bolsos vazios. A primeira impressão de São Paulo foi forte. E boa. Curiosidade.
Quem diria que essa emoção iria superar todas e ficar como a lembrança mais forte daquele primeiro momento? Pois foi! Vi pela primeira vez um japonês. Era um rapaz forte, bonito; mas algo estranho, fascinante. Quis tocá-lo com meus próprios dedos, chegar perto, saber dele, saber seu sabor. Puxei mamãe de lado e lhe confidenciei meu problema momentâneo. Foi difícil conseguir que ela me ouvisse, já que tinha alguns outros probleminhas naquele momento! Chegava a São Paulo, analfabeta, sem trabalho, marido também desempregado, sem dinheiro, muitos filhos. Assim mesmo arrisquei:
– Mãe, pega nele para mim!
Levei uma bronca e fiquei quieta. Levei muito tempo para terminar de satisfazer minha curiosidade com o povo japonês. Mas já resolvi. Tenho histórias ótimas com alguns de seus representantes. Já os toquei e senti seu sabor.
São Paulo foi bom para mim. No começo, não o entendi. Sofri. O frio, os dias chuvosos, escuros. A garoa! Meu vestido de chita tão adequado para o cerrado aqui me deixava quase nua. Meus pés descalços, tão ágeis para subir no pé de manga-rosa,congelavam, inadequados. Mas, acima de tudo, eu chorava a falta do sol, pelo menos de sua luz. E na minha ignorância me parecia tão evidente que se o sol “morava” em Minas, é lógico que ele não poderia estar aqui! Tinha ficado lá para sempre (voltar nos parecia impossível), a luz, o calor, e minhas queridas nuvenzinhas brancas dançando felizes no brilho do céu azul infinito.
Até que um dia acordei e senti, ainda de olhos fechados, algo familiar me tocar o rosto. Abri os olhos e vi um raio de sol que entrava com toda facilidade pela janela quebrada do quarto do cortiço que nos abrigava.
Nesse dia entendi que o sol é para todos e que existia algo maior que integrava o planeta. E que, num limite, algo essencial a mãe-terra nos oferecia. Meu Deus, que alegria! Meu irmão riu muito com minha ignorância e fomos juntos para a rua comemorar o sol.
Naquele dia feliz, minha primeira profissão, sob o impacto de meu novo entusiasmo, progrediu muito. Eu e este meu irmão, um pouco mais velho do que eu, estávamos fazendo um carrinho; com ele catamos papéis, latas e vidros para reciclar. Viramos catadores de papéis.
Depois tive muitas outras profissões. Empregada doméstica, empregada de fábrica, auxiliar de escritório... E fui indo, “subindo de classes”.
Fiz o curso primário. Me formei no terceiro ano: a escola desabou com uma chuva forte e resolveram nos formar logo. Coisas de Brasil. Cheguei em casa eufórica, contando:
– Mãe, me formei!
– Que bom, minha filha, agora você pode trabalhar com mais calma!
Nisso ela se enganou. Nunca parei de estudar. Até hoje. Adoro.
Até o segundo ciclo, minha família me aprovou. Já sabia inglês, taquigrafia. Era secretária. Ganhava bem. Ajudava todo mundo. Tudo certo. Aí, resolvi parar de trabalhar e fazer faculdade. Minha mãe não entendeu:
– Ai, meu Deus, acho que a Lica (sou eu, é meu apelido) ficou meio doida com essa mania dela de estudar. Onde já se viu?! Largar um emprego bom como o dela! A menina já tava mesmo desarranjada com essa história de política, que é um perigo... Sei não, só Deus ajudando, porque ela não escuta ninguém!
Eu estava envolvida com o movimento contra a ditadura militar, o que deixava meu povo apavorado... De qualquer forma, decidi fazer faculdade de psicologia. E queria uma faculdade boa. O assunto não era fácil, não. Afinal, curso primário com classe desabando, curso técnico de contabilidade noturno, que era o único acessível e profissionalizante...
Enfim, eu vivia a vida do brasileiro de classe média baixa naqueles tempos. E tentava alçar vôo para mais um degrau social.
Comprei um táxi para poder ganhar algum dinheiro que me ajudasse a me manter na universidade. E fazia trabalhos esporádicos como tradutora, babá, professora de inglês, o que fosse possível para manter os estudos.
Entrei em primeiro lugar no Sedes Sapientiae, uma ótima faculdade. Uau!!! Oitavo lugar na USP! Maravilha. Acho que exagerei, pensei comigo. Não precisava ter estudado tanto no cursinho! Fiz a USP, que era grátis e ótima. Tempos bons, apesar de difíceis.
A ditadura
Nem gosto de lembrar...
Harvard University! Imaginem! Do cerrado até Harvard University em vinte e poucos anos! Pois é. Ganhei uma bolsa de estudos especial, uma experiência importante.
Mas eu estava ficando mesmo, como mamãe prenunciara, “louquinha da silva”. Excesso de mobilidade social. Passagens violentas de grupos sociais... Ditadura... Movimento revolucionário católico... Meus amigos sendo assassinados... Perplexidade, culpa, indignação, revolta, impotência, onipotência.
Procurei minha primeira psicoterapia. Paulo Gaudêncio. Mais uma vez, dei sorte. Ele era bom. E aceitou que eu pagasse no futuro, quando saísse da faculdade, um dia. Vários anos dos quais me lembro com uma sensação que em algum lugar se assemelha àquela do pé de pequi. Nem eu sei por quê. Mas as duas sensações chegam juntas dentro de mim. Acho que por causa da sombra refrescante, como um abraço amoroso, que o pé de pequi oferece ao viajante exausto que atravessa o cerrado.
Casei. E vivi isso intensamente. Quatro filhos. Muita coisa. Trinta anos depois, decido terminar o casamento. Vivi isso intensamente. Muita coisa.
Busco minha segunda terapia. Psicanálise. Maria Alice Franciosi. Maravilha! Quando entrei lá pela primeira vez, olhei-a e disse:
– Eu gosto de você, mas algo me incomoda: você parece uma menina do Des Oiseaux (escola de gente rica)!
Eu era pobre e revolucionária. E tinha um preconceito contra o povo riquinho e mimado. Ela respondeu:
– É. De fato, eu sou de lá mesmo! Foi a minha escola.
Mas deu tudo certo, apesar da enorme diferença de histórias. Ela, uma “menina rica”, e eu, a proletária revolucionária. E foi ótimo. Descobri que essas coisas estavam muito mal contadas dentro de mim – e fora, no social. No essencial, a gente pode se encontrar para além das diferenças.
Oito anos juntas, numa viagem interior extraordinária. Guardo imensa gratidão a ela e à vida por essa experiência.
Entro no psicodrama. Aprendo, trabalho. A clínica me fascina.
Estudo muito. Pesquiso. Congresso, teses. Ensino psicodrama. Dou supervisão.
Estou no apogeu dessa viagem quando surge outro caminho: Reich. O corpo na psicoterapia. Me apaixonei para sempre por esse caminho. Nunca deixei o psicodrama, nem enquanto técnica, nem enquanto forma de entender o ser humano e as relações entre as pessoas. Isso entrou em minhas veias e faz parte de minhas células. Elas se integraram com a psicoterapia reichiana como uma luva. Caminham na mesma direção, se enriquecem mutuamente.
Psicodrama, Reich, terapia junguiana, gestalt. Psicanálise de novo, um novo mergulho.
Teoria sistêmica
É impressionante a contribuição que “o pessoal da sistêmica”, como os chamamos, deu ao campo de conhecimento humano. Me embrenhei no estudo e prática dessa disciplina e fiz viagens de extraordinário prazer em seus caminhos.
Física Quântica
A linguagem da física quântica se mostra um instrumento precioso, preciso, rico, para explicar certos conceitos de psicologia, especialmente da psicoterapia corporal reichiana.
Fui em busca, tento aprender a falar essa língua para estar em melhores condições de estabelecer diálogo com o mundo moderno, as pessoas vivas de agora.
Brigar por linguagem não vale a pena, é desperdício de energia. O importante são os conceitos, os movimentos essenciais. A linguagem deve ser aquela que mais comunica, que mais ressoa nas pessoas e que amplia o movimento.
Psicologia integral
Entendi que a questão fundamental não era mais – nem para mim, nem para o mundo atual – focar, colocar toda a energia em criar muros de separação de identidade. Esse movimento é importante num certo momento evolutivo. Depois, a direção precisa mudar. Nada de guetos. E “sim” a grupos, sistemas abertos, em constantes trocas vitalizantes entre si.
Um sistema vivo, um grupo vivo, tem, sim, uma membrana que delimita seu território, sua identidade. Mas essa membrana deve ser flexível, permeável, permitindo uma entrada e saída seletivas mas fluentes de informações entre o sistema e o campo que o circunda. Se não, o sistema fica isolado, sem trocas, e começa a perder vitalidade.
Os vários campos de conhecimentos são aspectos da verdade, da sabedoria. Cada um ilumina uma parte do ser. Poder considerar todos os aspectos, incluí-los, de forma organizada e complexa, é enriquecedor.
Dentro desse enfoque entram todas as dimensões do conhecimento, numa tentativa de não excluir nenhuma dimensão humana. E aqui entra a dimensão espiritual do ser humano.
Penso que a psicologia integral não deve descartá-la. Deve incluí-la e colocá-la em seu devido lugar. Que lugar é este? Esta é uma outra história, que fica para uma outra vez. -como dizia meu pai, mineiro curvelano e bom contador de histórias.