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O difícil momento de
assumir-se, parar em pé, tornar-se adulto.

Carências básicas nos primeiros anos de

vida podem resultar no adulto de pernas

frágeis, que não caminha sozinho, ou no

de costas largas que, em busca de afeto e aprovação, aguenta tudo.   

     Todas as filosofias do crescimento pessoal acho que concordam num ponto: a gente só cresce quando é capaz de parar em pé sobre as próprias pernas. Quem não está de pé sobre as suas pernas, está dependurado. Dependurado numa pessoa, numa ideologia, numa ilusão, ou até mesmo, numa terapia.

     É uma situação incômoda. O outro pode ir embora, a ilusão se desvanecer e você se esborracha no chão. Viver dependendo, sem pernas próprias, é no fim muito doloroso. Especialmente nos tempos de grandes crises, quando o chão treme um pouco para todo mundo. Você está muito bem no colo de alguém ou de uma situação. Mas se, de repente, alguém grita incêndio! Você nunca sabe o que pode acontecer... Uma coisa é certa: as chances de se sair bem do fogo todo é maior se você puder confiar em suas próprias pernas ... No sufoco dos momentos de crise, aquele em cujo colo nos jogamos, também está mais frágil, mais vulnerável e pode não conseguir nos carregar... É um risco. As crises nos testam. E nos chamam a evoluir, aprender a andar, ganhar a postura do adulto bípede, aquele que sabe dançar com a gravidade e manter seu próprio eixo, sustentar-se na vida como um filho da terra e do céu, apoiado na mãe terra e com o olhar livre para buscar o pai Divino, o horizonte, as alturas, a verticalidade auto sustentável.

     Mesmo assim, ficar no colo parece que é uma velha tentação do ser humano. Vamos analisar um pouco como isso começa. Porque estar no colo nem sempre é perigoso. Para a criança, estar no colo, ser dependente, é normal e saudável. Aliás, é indispensável. A criança que tem um bom colo, um colo que lhe transmita segurança e bem-estar, está recebendo exatamente o que precisa para tornar-se um adulto independente, maduro.  No útero ela está extremamente dependente e em perfeita integridade com essa situação. Mas é bom lembrar também que nem no útero o bebê é inteiramente dependente. Ele precisa fazer os movimentos dele para sobreviver. Ele já tem o seu princípio de vida que o faz se grudar na placenta, senão morre. Quando estava grávida, durante a noite, dormindo, eu algumas vezes me deitava sobre minha barriga e o bebê logo reagia, chutava até eu acordar e trocar de posição. Ele já sabia brigar pela vida. Mas isto implica, é claro, que a mãe não durma como uma pedra e sim como um ser humano que está grávido de um outro ser e fique sensível e atenta a isto. Isto é, a criança de fato depende de um adulto para sobreviver. E isto é bom e justo.

Onde a marcha para a dependência,

ou independência, tem início

  A partir do nascimento, esse lutar pelas suas coisas começa a ficar gradativamente maior. No entanto, não é bom que os pais forcem prematuramente a independência no filho. Existe uma espécie de mania atual de querer que o filho cresça logo – fale rápido, ande rápido, saiba tudo; é uma ansiedade dos pais, que indica que algo não vai bem nestas relações familiares. Estes pais não estão aguentando lidar com o desamparo natural dos filhotes humanos. Estão projetando na criança seus próprios medos e angústias. E muitas vezes, são estes mesmos pais que, depois, quando o filho tem dezoito anos, querem à força amarrá-lo em casa. Neste momento, na adolescência, a família tem que dar apoio emocional para o jovem ir para a vida lá fora, ir além da família, ampliar seus horizontes e suas potencialidades. É hora de desapegar, de deixar o passarinho voar!

     É muito saudável que a criança goze plenamente a sua dependência na época em que isto é natural e necessário. Que nessa época ela seja generosamente suprida em suas necessidades – de leite, atenção e afeto. Quando é bebê não precisa mesmo das pernas, funcionalmente. Vive naturalmente dependurado no seio da mãe, no colo. E é bom lembrar que essa mãe também está, num outro nível, dependurada no seu bebê. A mãe também tem necessidade da criança, de certa forma e até fisiologicamente – se não der de mamar, o seio dói.

     Corre uma energia incrível entre os dois. Quanto tudo vai bem, cria-se entre a díade mãe-bebê, um campo de energia que nutre a ambos, que gratifica a ambos. Como mãe eu posso garantir que essa relação, que os psicólogos chamam de simbiótica, realmente traz vitalidade através do imenso prazer que é capaz de proporcionar. E é exatamente a vivência dessa relação inteira que vai dar suprimentos físicos e afetivos para que a criança, sentindo-se segura e não ameaçada, tenha energia própria para trilhar seus próprios caminhos.

     Se a mãe não está bem neste período de vida em que seu bebê precisa estar tão dependente dela, não conseguirá oferecer à criança as bases para sua futura independência. Precisamos poder depender no início da vida para depois sermos capazes de ir adiante sozinhos, por nossas próprias pernas. É por isso que o ambiente familiar, principalmente a figura paterna, que ofereça um campo de proteção e harmonia onde a cena mãe-bebê possa se desenrolar em segurança, é essencial.

     Bem suprida nesta fase em que sua boca é o centro de seu mundo e o seio da mãe sua única fonte de vida, a criança vai encerrando este ciclo de vida e ficando pronta para explorar outro universo. Em vez de “ mamar”, o bebê agora vai encontrar o “ papar”, a “papinha”, o pai. O pai e a papinha significam uma opção a mais e um novo grau de independência. É o momento do desmame. Momento fundamental para a maturidade. O bebê se desgruda da mãe e encontra o colo do pai, da família. Seu mundo se amplia. Agora sua vida não é mais um único ser, a mãe. Tem sua primeira opção. Se houver, é claro, um pai, ou substituto, presente no lar; e que esta presença não seja somente física, mas uma presença real, significativa e forte afetivamente. Em famílias em que somente a figura materna é presente, é bom que ela desenvolva sua boa energia paterna, isto é, aquela qualidade de saber colocar limites com ternura e firmeza ao mesmo tempo. Educar!

      Interessante notar que há pessoas, e isto é muito frequente, que no fundo de sua personalidade ainda são um bebê muito pequeno em busca de uma mãe. Elas buscam ainda um ser, alguém que lhe dê tudo, que seja sua fonte de vida. Não aprendeu ainda a viver por si e para si e com os outros. Elas vivem pelos outros, através de alguém. É uma pessoa que guarda dentro de si um bebê muito pequeno que depende do olhar e do colo de alguém para ser ele mesmo, para sentir-se com valor. O olhar amoroso da mãe confere valor ao seu bebê, é como se fosse um espelho onde a criança se enxerga um ser de luz, um tesouro, ou uma merdinha qualquer. E se faltou o tal olhar materno amoroso, a criança continua, através da vida, a buscar este olhar em cada pessoa que encontra. É como uma peça que fica faltando no seu quebra-cabeça que ela desesperadamente procura sempre completar. Quando as coisas vão bem, sendo bem-amada, a criança guarda dentro de si uma base de amor-próprio, uma boa alta estima. Sente-se, dentro de seu peito, um ser que tem um valor intrínseco, capaz de sustentar uma relação, de dar prazer e satisfação a alguém e a si mesmo. Já não depende tanto do ibope, do que os outros pensam, para saber se tem valor ou não, se seu ato foi bom ou não. Ela se sabe valiosa, e do modo mais profundo. Esta é uma base da independência. E o mais interessante é que este tesouro interior dá o chão para a verdadeira humildade e protege do narcisismo e vaidade doentios, os quais, na verdade, são defesas desta fragilidade escondida no fundo da alma, a criança mal-amada e assustada.

     Após o desmame a criança vai se descobrindo a cada dia um ser mais capaz de independência. Já consegue ir em busca dos objetos e pessoas que deseja. Consegue chamar alguém, é o início da comunicação verbal, e engatinha. Dirige seu gesto para aquilo que deseja. Descobre suas mãos humanas: agarra, pega, larga. Age sobre o mundo. Começa a ir em busca de seu próprio destino. E finalmente  - põe-se de pé.

     Ficar de pé! Este é o dramático momento na evolução dos seres vivos neste planeta em que um dia um mamífero se tornou humano. O ser humano é um mamífero bípede, que se colocou em sentido vertical, desafiando a gravidade. Isto surgiu no mesmo momento em que apareceu o cérebro tipicamente humano, chamado neo-cortex, e com ele a possibilidade de um novo nível de consciência. A maturidade neo-cortical, a partir de um ano de idade, aproximadamente, inclui a possibilidade da simbolização, da palavra. O universo tipicamente humano se descortina com este instrumento.  Surge o pensamento, a comunicação, a capacidade de alcançar o poder dos símbolos. Até então, havia contato, através de sinais, a linguagem corporal, os gestos e movimentos que expressam as emoções e sentimentos, a grande inteligência emocional. Agora as possibilidades se ampliam. Surge a linguagem, instrumento fundamental para a independência. A palavra agora envolve todo o ser, expressa o ser, afirma o ser. Um salto evolutivo da vida neste planeta, o ser humano.

    Existe uma correlação entre um grau sofisticado, profundo, de consciência de si e do seu entorno, do mundo, e uma postura ereta correta, plena. Pôr os pés no chão, é dar-se conta da realidade. É localizar-se no tempo e no espaço. É olhar em torno e saber-se dentro de um todo, parte integrante dele. É enxergar amplo, ver o passado, o presente e vislumbrar o futuro: o antes, o agora e o depois. É poder dirigir seu movimento ao futuro que projeta. É perceber que as ações do presente constroem o futuro inexoravelmente.

     Isto tudo implica que quando, por exemplo, num processo psicoterapêutico reichiano, eu trabalho a postura de uma pessoa, estarei, necessariamente, trabalhando sua possibilidade de mais contato com a realidade, e portanto, sua maturidade emocional. 

     Portanto, após o desmame, lá pelos nove, dez meses de idade, a criança aos poucos começa a experimentar suas próprias pernas. Mas ainda precisa da referência das figuras importantes de seu mundo. Já brinca sozinha, desde que a mãe ou o pai estejam por perto, dando retaguarda. É um lento e belo processo. A gente poderia resumir dizendo que a primeira fonte de energia da criança é o cordão umbilical, que a liga ao chão útero, o corpo da mãe. Lentamente, passando por várias fases, ela vai se libertando, simbolicamente, desse cordão e passa a ter uma alimentação energética através das próprias pernas, ligada diretamente à mãe-terra.

   Educar um filho é torná-lo capaz de viver por si mesmo, numa postura confiante em seu contato com a mãe-terra. A terra é o chão que nunca falta a quem se sente seguro sobre as próprias pernas. Como diz um paciente: “Não quero ser um ramo que precisa de um tronco para apoiar-se e poder se sustentar. Quero ser uma arvore, ser meu próprio tronco e desta posição me relacionar com as outras árvores! Maturidade é poder nutrir-se diretamente da vida, sem intermédio de outro ser. Isto não implica isolamento. Muito pelo contrário. Colocar-se de pé sobre o planeta-mãe é saber-se conectado a tudo e a todos, na teia inexorável da vida. A postura ereta nos viabiliza um horizonte de 360 graus, e viabiliza a dimensão vertical, o acima, o Divino. É a possibilidade do abraço de verdade, o coração no lugar certo.

     O bípede humano, ao colocar-se de pé e na postura correta, no seu próprio eixo, naturalmente amplia sua visão e encontra o firmamento, fica fascinado pelo seu entorno, abre a possibilidade que São Francisco atingiu, a percepção de que somos um ser universal, irmãos do sol e da lua, que fazemos parte de um todo e que nele temos nosso lugar, nosso lugar único, a função da existência humana. Cada um com sua própria vida, sua própria função dentro do todo. Responsável por si e pelo todo, mas não dependurado, dependente.

     Um sentimento, tipicamente humano, engrandece este mamífero que um dia se pôs de pé. Ele toca o chão, a terra, e pode sentir sua profunda conexão com o planeta-mãe. Ele pertence à terra, está profundamente ligado ao destino deste planeta, é irmão de cada elemento que o cerca. A Terra é a nave na qual navega intrinsicamente trançado com tudo e todos que compõem esta esfera. Ele pertence à terra? Sim. Mas, ao se por de pé, ele enxerga as estrelas, vê o céu. Só o homem pode contar às formigas como é o firmamento! Só ele se dá conta de que não está só, de que é um sistema, um universo dentro de outro universo, de outros universos.

Penoso isso de passar a vida

buscando a mãe que não se teve

    No entanto, confiar em si mesmo e sustentar-se em suas próprias pernas, é um desafio complicado para pessoas que não foram adequadamente supridas em seu início de vida. Elas guardam em sua personalidade algumas das características do bebê. Suas necessidades básicas não foram supridas e elas vão em frente com um buraco aqui, outro ali, e uma sensação de privação, de vazio. Elas inconscientemente se recusam a crescer, como que esperando pelo que tinham direito e não receberam. É o adulto que vive achando que o mundo todo, o tempo inteiro, deve alguma coisa para ele. Ele acha, por exemplo, que deveria ter emprego, não que deveria buscar emprego. Que as coisas de que precisa deveriam vir até ele, mesmo porque o bebê que há nele acredita que não consegue ir em busca do seu objeto de desejo. Além disto, há uma convicção, que ele tem direito de ser cuidado por uma mãe qualquer, carregado, embalado. E reclama, chora e berra por esta injustiça que a vida lhe está fazendo. Bom lembrar que no adulto chamado “normal”, o mais comum é não ter muita consciência do bebê que chora dentro de si. É o que chamamos de um traço de caráter, um jeito de ser, do qual a gente nem se dá conta, vai tocando a vida, prestando atenção somente no adulto forte que temos também, mas isto de não tomar consciência da criança ferida dentro da gente nos atrapalha muito.

    Ora, esperar que a vida nos traga aquilo que precisamos, é algo lógico para um bebê. Para um adulto não tem sentido. Ele agora é o único responsável pela sua vida. Um adulto pode ser ajudado em muitos níveis. A solidariedade faz parte da natureza humana quando há saúde emocional. Podemos e devemos dar uma mão uns aos outros. Mas carregar alguém do nosso tamanho é peso demais, trabalho sem fim e que não leva a coisa nenhuma. Leva a decepções, mágoas e rancor. A uma amargura cada vez maior.

     A mãe que você não teve na infância, não teve e pronto. Coloque isto na sua conta de lucros e perdas. Não tem esta conta? Então abra-a imediatamente. Ela vai ajudar você a sair da infância emocional, de uma infantilidade que só traz sofrimento. Contabilize o prejuízo, aceite-o, e comece a ir em busca de superá-lo você mesmo. Quero dizer que é você mesmo que tem que trabalhar para integrar em si mesmo a mãe boa, a mãe suficientemente boa, porque mãe perfeita não existe.  Isto inclui aprender a se olhar, a se escutar com atenção amorosa, a levar a sério as suas necessidades. Respeitar-se e se fazer respeitar. Mas cuidado, não se mime. Mimo não é amor. É desamor. A mãe que mima amolece o caráter do filho e o faz um fraco e dependente. Ser amoroso é também ser firme e realista.

   Na verdade, quando faltou uma presença materna de boa qualidade nos primeiros anos de vida, a pessoa pode crescer desejando uma relação idealizada. Quer uma mãe no sentido em que um bebê vê a mãe: um ser perfeito que tem tudo aquilo de que ele precisa para sua completa satisfação. Eternamente presente e disponível para ele, 24 horas por dia, 365 dias por ano. (O que, aliás, para o seu lado adulto, constitui um tormento!)

    Numa relação mãe-bebê saudável, a um certo momento do seu processo de desenvolvimento, a criança enxerga a mãe como um ser humano inteiro, com seus prós e contras, e não como um grande e inesgotável seio, eternamente disponível.  De um lado, vive certas decepções e suas agruras, de outro, sai lucrando, pois aprende a amar de verdade: isto é, aceitar e querer bem os seres humanos, inclusive a si próprio, tal como são, um pacote que tem lados positivos, agradáveis e tem também limitações. Aprende a lidar com frustrações, torna-se forte, enraizado em si mesmo e na vida. Firma-se sobre suas próprias pernas e pode agora ir em busca de seu rumo; não é mais um bebê eternamente dependurado no seio materno. Cresceu, foi em frente, caiu na vida, abraçou a vida!

   O problema do adulto-bebê é que ele em geral se torna   uma pessoa extremamente crítica, exigente, reivindicativa. Revela-se ótimo na oposição, porque, na hora de construir alguma coisa, tem atitudes de bebê. Porque o bebê não precisa construir nada, é mesmo um ser em potencial. Já para o adulto não basta ter potencialidade. O adulto precisa realizar, materializar o sonho. E é difícil para este tipo de adulto entrar em contato com a sua falha básica, fazer uma autocrítica realista. Porque ele realmente tem um buraco, uma fragilidade real em sua personalidade, o que se reflete inclusive em sua postura física: pernas frágeis, às vezes o corpo fica maior, mais volumoso, da cintura para cima, por exemplo.

   Lembrando, porém, que a postura e o jeito todo do corpo é muito mais complexo do que isto e varia dependendo da história de vida da pessoa. Quero dizer que o corpo tem sua forma de contar a história de vida da pessoa. E podemos aprender a ler o corpo, a entender sua fala.

    O peito entrado para dentro, por exemplo, meio esmagado, frágil,  revela as dificuldades de acreditar em si, no fato de que pode colocar o peito pra frente e dizer: eu sou. A postura correta, o tórax bem posicionado, só pode acontecer se o corpo todo tiver entrado no eixo; a coluna vertebral oferecendo eixo, a pélvis e os pés dando suporte, numa verticalidade que conversa com a terra em baixo e o céu acima; o pescoço firme mas não rígido; o queixo não precisa mais ficar para cima, desafiando, escondendo o medo. Você fica inteiro, disponível, os braços livres para o abraço! O olhar, livre do medo, faz contato com o outro à sua frente. É a postura da dignidade humana! Um lugar onde a gente é, mas não precisa ser mais do que os outros. Ser é suficiente. A gente está se sustentando no diálogo constante com a lei da gravidade, diálogo amistoso, dançando e brincando com ela, amigos. Descobrimos aí que a mãe terra nos dá suporte para fincarmos os pés e ficarmos livres para olhar em torno e para cima. Um fio celeste nos dá o outro ponto de apoio, ergue nossa postura, e ali somos filhos da mãe terra e do pai celeste.

    Mas, enfim, o fato é que se as coisas foram difíceis demais no início da vida, na relação primária com a mãe e o pai, a gente vai ter que trabalhar as consequências mais tarde. Quanto antes melhor. Até a adolescência é mais fácil. Depois, é difícil, mas não impossível.

    O que resta deste começo difícil são sensações desestruturantes de vazio, angustia, depressão, uma grande carência afetiva.

     Não é fácil lidar com pessoas muito marcadas por estas cicatrizes precoces da vida. Elas têm um constante sentido de reivindicação, um enorme senso de justiça forte, mas irreal. Foram injustiçadas em direitos básicos e agora têm muita dificuldade para entrar em contato com a realidade, que também nem sempre é justa, nem sempre é mãe. A realidade em si não tem que parecer justa ou injusta. A gente é que tem de aprender a lidar com ela e a transformá-la. Mas esse tipo de pessoa tem muita dificuldade em se admitir um possível agente de transformação e prefere esperar que alguém venha e resolva as coisas por ela. É típico da criança pedir que alguém faça por ela. E no mundo em que se vive é complicado isso de ficar esperando emprego, dinheiro, a justiça. Esta pessoa precisa se fortalecer e sair a batalhar pelo que quer, as coisas não vêm mais sozinhas.

     Aliás, essas pessoas em geral têm braços pouco energizados e dificuldade de ir em busca daquilo que querem. Funcionam muito na cabeça. A cabeça vive a mil. A imaginação suprindo a dificuldade de realização. Geralmente têm os ombros muito tensos, erguidos por tensões crônicas, revelando uma personalidade dependurada: como se a energia estivesse subindo toda para frente e ela ainda estivesse ligada à vida pela boca, como na fase oral. Precisam ainda se desmamar, sair do colo e encontrar seu chão, entender-se com sua mãe terra.

   São também pessoas que oscilam muito entre a depressão e a euforia. Na euforia, acreditam em suas ilusões todas – que são boas, poderosas, cheias de capacidades. E, nessa fase, conseguem bons inicios de relação. Mas, como não têm os pés na terra – são irreais desejando muito o que não precisam ou o que não é possível – suas relações e realizações não têm boa sustentação e podem não durar muito. Aí entram em depressão. Um momento difícil! É o contato com a realidade, a desilusão, a queda das nuvens. Na verdade, eles estão quase sempre entre as nuvens ou no fundo do buraco, raramente no meio, que é o chão, único lugar para integrar o desejo com o possível e distinguir entre desejo e necessidade. Daí também a grande dificuldade que essas pessoas têm para conseguir realizações satisfatórias tanto no campo afetivo como profissional.  Vão em busca de seus desejos de forma irreal e são muito exigentes. Exigem muito e não estão dispostos a dar muita coisa em troca, como o bebê. O que um bebê tem a dar, sua parte na troca, é o prazer que oferece ao seu cuidador, o prazer que a gente tem em dar a quem sabe receber, que aproveita o que recebe, que fica feliz, satisfeito e cresce e nos ama de volta. E o bebê, por ser tão pequenino, vulnerável e lindinho, é o objeto ideal desta troca, desta relação. Ele nos dá alegria. Mesmo quando estamos lidando com uma criança difícil e problemática, se o adulto é uma pessoa amorosa e tem bondade, a troca é boa e promissora porque uma criança é um projeto em andamento e por isso aceita reorganizações e recupera com mais facilidade a funcionalidade perdida. Já o adulto que não conseguiu crescer emocionalmente, fica mais complicado. Agora o projeto, o caráter, está formado. Temos que partir para uma estratégia de reforma! O que é mais difícil, mas possível. E necessário! Evoluir é um movimento continuo e infinito, um movimento de vida. O objetivo é caminhar sempre nesta direção.

    A pessoa que se atrapalhou muito neste caminhar, se complica, sofre e faz sofrer. Não consegue ter gratidão ou esta dura pouco porque ela funciona muito como um saco sem fundo. Nada é suficiente. Não consegue administrar suas frustrações e acaba sempre culpando alguém, principalmente seu cuidador, por sua eterna insatisfação. Quando o cuidador não consegue lhe dar algo, satisfazer um seu desejo, fica com muita raiva, frequentemente descontrola a raiva e ataca o cuidador, o outro da relação. Mesmo que este outro já tenha atendido a noventa e nove desejos, se no centésimo não for possível, a raiva explode e tudo o que foi dado antes, não conta. Isto é ser saco sem fundo!

     Temos que prestar atenção, ter consciência, quando nós próprios estamos caindo num padrão assim e tratar de sair dele. A humanidade hoje está perigando muito entrar por este caminho, infelizmente. Mas o quanto este padrão é predominante na personalidade é uma questão importante. Se a dose não for muita, a gente consegue tomar consciência e corrigir. Mas a partir de um certo ponto, a coisa fica mesmo difícil e precisa de tratamento psicológico e\ou psiquiátrico.

    Temos também que prestar atenção, tomar consciência, quando estamos numa relação com uma pessoa muito comprometida com este traço de caráter que estamos discutindo. No início da relação aquela pessoa costuma ser muito fofa e agradável. Sabe seduzir e oferecer seu lado doce e caloroso. Mas depois, no segundo ato da relação, é um tormento! O terceiro ato desta peça... depende de como as pessoas envolvidas conseguiram se reposicionar.

    Enfim, voltando ao nosso tema, o fato de não conseguirmos equilibrar certos estresses ocorridos na infância e assim podermos continuar no nosso caminho evolutivo até a maturidade emocional do adulto, é de fato difícil. Tanto para a gente como para os demais, principalmente para as pessoas mais próximas.

    A gente tem que ver bem o quanto ainda estamos no colo de alguém, ou melhor, o quanto ainda estamos tentando estar no colo de alguém, achando que a ‘vida’, os outros, tem o dever serem ‘mães’ e suprir nossas necessidades. Esta ilusão é perigosa. É disfuncional. É importante nós mesmos assumirmos nossa vida, buscar nossa própria potência de cuidarmos de nosso bebê carente, começar a educa-lo de verdade, com amor e limites pois mima-lo não vai ajudá-lo a crescer e ficar forte, capaz de fazer sua parte.

    Estar no colo de alguém, precisar ser carregado, é uma posição muito difícil e vulnerável. Haverá sempre o medo de ser abandonado. Um adulto não fica abandonado se o outro vai embora. A separação tem outra conotação e muito mais recursos para tornar-se uma experiência que, embora sofrida, trará benefícios. Até no Brasil não tem o Departamento do Maior Abandonado. Só tem do Menor Abandonado. E ainda por cima, não anda funcionando nada bem!

     Quando a relação é de muita dependência, haverá também muito medo do abandono, o que acaba gerando muito ressentimento e outras emoções bastante tóxicas, difíceis de serem digeridas, elaboradas.

    Quem segura alguém no colo também fica dependente da sua carga. O adulto precisa é de companheiros ao seu lado, cada um nas suas pernas, fazendo trocas revitalizantes para todos os envolvidos.  A relação onde um tem que carregar o outro é sempre minada por raivas mútuas, cobranças mútuas. Um está sempre devendo para o outro, carregando ou sendo carregado. Claro que faz parte do amor a gente às vezes carregar o outro em seus momentos de fragilidades na luta da vida. Isto é bom e justo e traz crescimento e vitaliza quem dá e quem recebe. Aqui há gratidão, reconhecimento e aproveitamento da ajuda recebida, e todos se enriquecem. Isto é a bela dança da vida. Muito diferente da condição crônica, paralisante e desiquilibrada onde se joga o jogo da culpa.

     A pessoa presa às suas carências básicas está, na verdade, sempre à procura da mãe. No namorado, no patrão, nas instituições sociais, no governo, na terapia. O terapeuta não é mãe, mas pode ser materno e ajudar a pessoa a sustentar sua evolução e refazer sua estrutura cada vez em níveis mais evoluídos do processo natural de desenvolvimento. Mas nas relações sociais, não é nada adequado confundir, por exemplo, patrão e mãe. São demandas diferentes, regras do jogo diferentes. Não vai dar certo!

Até as mulas, quando sobrecarregadas,

sabem dizer: isso eu não aguento.

    Vamos entender um pouco um outro tipo de pessoa que também não está sobre suas próprias pernas, que também perdeu sua verticalidade bípede saudável, se curvou, parece corcunda pelas grandes tensões musculares nos ombros e pescoço. Vai se empurrando pela vida, jogando sobre suas costas um peso enorme, carregando o mundo nas costas. É um parceiro que atrai muito aqueles que querem ser carregados! E, pior ainda, ele “chama” o lado folgado de todos, cria folgados, poderíamos dizer. Acostuma mal as pessoas. Parece precisar aguentar tudo! É uma onipotência que também revela uma relação deficiente com a mãe, num lar onde a figura paterna era fraca, submissa ou ausente. E a mãe, talvez tenha sido uma pessoa como descrevemos antes, internamente um bebê exigente e externamente uma pessoa difícil de agradar e sujeita a explosões de raiva repentinas e violentas. E neste tipo de família, o filho, e frequentemente a filha, só tem como opção tornar-se o servidor, o cuidador da mãe, a mãe da mãe. Isto é, carrega a mãe nas costas... e também o pai... e irmãos se tiver... E mais tarde, sai pela vida procurando ser ‘útil’ a qualquer custo pois ele só conhece esta forma de relação. Acredita que só será aceito se for útil, se der conta de tudo e de todos à sua volta, se fizer a sua parte e a dos outros. Mais cedo ou mais tarde pagará o preço desta postura: dificuldade de dormir (o que será do mundo se ele não estiver cuidando?!!), candidato sério a fibromialgia, dores lombares e no pescoço...

  Este Hércules disfuncional também sente muita dificuldade, em sua onipotência, de entrar em contato com a realidade. Tem mais força que o outro tipo, o oral, uma criança de poucos meses, que descrevemos antes, é sim mais maduro e tem um sistema, um organismo, mais vitalizado.  Mas, na verdade, não se dá conta de que está carregando muito mais do que pode aguentar. Vive estressado, renunciando a muita alegria, a estar inteiro. Só aguenta carregar demais à custa da sua vida, da sua saúde, de tensões enormes em seu próprio corpo. Precisa aprender a humildade de dizer: “olha, isso eu não aguento”. Se preciso, como as mulas: se você carrega demais um animal saudável, ele simplesmente dobra os joelhos, admite que não aguenta, emperra, arreia.

     Mas estas pessoas acham que devem aguentar tudo, porque, de certa forma, estão “condenadas” a serem bem-sucedidas. Então, para aguentar as cargas pesadas que vão topando pela vida, elas como que reforçam as pernas com ripas nos joelhos, e não dobram nunca. Arrebentam a coluna, ficam com dor nas costas, mas se negam a perceber a própria dor, o próprio cansaço, suas limitações. Vão tocando a vida como uma máquina que tudo encara. Têm que provar coisas para serem amadas. Vivem com a pele verde de cansaço, com ameaça de fibromialgia, doenças autoimune, enfarto, câncer, com a ilusão de que aguentam. Até que estouram. Estouram a coluna, o organismo, a vida afetiva. Essa onipotência forçada é outra forma de não estar em pé.

   Enfim, evoluir, amadurecer, custa.  Parar em pé parece tão simples, na verdade é uma luta, às vezes, muito dolorida, cheia de preços, mas extremamente compensadora. Os que começam vão em frente, cada vez com mais força. Nada se compara à alegria de estar em seus próprios pés.

     Há preços, medos. O medo de perder o colo e ficar sem ninguém. Quem tem pouca perna fica com medo de não ter definitivamente quem cuide dele. E há também pessoas que até já estão sobre suas pernas e têm medo disso, fingem que não estão. Como a história do sujeito que planta o milho, colhe, faz a farinha, o bolo e, depois que está tudo pronto, põe a colher na mão do outro e diz: “Dá na minha boca”. E ainda acrescenta: “Ah, o que seria de mim se não fosse você... Tem medo de perceber que já está nas próprias pernas. Esse medo vem muito do medo de ficar só. De ter que largar certas ilusões. Perder pessoas que pensa que tem. De perceber, por exemplo, que o marido não é de fato um bom marido. Ou talvez até seria se não tivesse tanto que ser mãe também. Um tanto e de vez em quando, tudo bem, é até saudável. Mas não deixe passar do ponto e confundir os campos!

   Quando alguém para sobre as próprias pernas, seus referenciais mudam.  Uma relação de excessiva dependência mútua, é, por exemplo, uma coisa triste. É como um salário mínimo de afeto. Pouco, mas garantido. Porque, na verdade, o outro depende tanto de você como você dele. Ninguém pode ir embora, senão os dois caem. Quem não tem pernas, não pode ir embora.  Não há risco de abandono. Quando ambos estão sobre suas pernas, a relação não tem garantias. Cada um pode ir embora à hora que quer, quando isto fizer sentido. Ficar é uma escolha e as pessoas são livres. Livres e unidas por escolha e não por incapacidade e este é certamente um campo fértil para o amor. Quem está prisioneiro, por mais que ame, também odeia o carcereiro.  Se fica é porque quer, é porque está feliz ali, porque reconhece a relação como um campo de crescimento e possibilidades, apesar das frustrações inevitáveis da vida. Isto muda tudo.

    Mas não é fácil. Tem pessoas que embora estejam infelizes e sufocadas num casamento desvitalizados e desvitalizante, confessam seu enorme medo de fazer terapia.  “Se eu cresço, meu marido me abandona: tenho que ser dependente para ser amada”. Ou então a pessoa vence este medo e cai em outro: “se eu cresço, eu vou querer abandonar o meu companheiro, se ele ficar na mesma sem desejo ou possibilidade de crescer junto”.

     De fato, viver tem riscos!  A vida é mudança e, portanto, não sabemos o que vem depois. Temos que aceitar e aprender amar o desconhecido, confiar na inteligência fundamental da vida, apesar de tudo. Parar o movimento da vida, congelar o momento presente, é impossível. E péssimo. Você não segura o passado porque ele já se foi, não existe mais, e acaba perdendo o presente. E como o futuro é o fruto de como vivemos o presente, então... a conta só dá negativo. Portanto, melhor mesmo é fazer as pazes com o caos da mudança inevitável da vida e aprender a administrar você mesmo na escolha dos caminhos e direções.  Seu casamento acaba se você fizer terapia, se você evoluir, amadurecer? Pode ser sim. Mas e se você não crescer? Mudar é inevitável! Então escolha o como e para qual direção! Afinal, uma coisa é certa: Quando a gente está no nosso melhor e consegue ter consciência, clareza, para mudar nossa posição na relação, escolher um lugar que viabilize um encontro mais funcional e revitalizante, isto nos favorece, nos liberta e ajuda o outro a encontrar seu melhor. Não podemos mudar o outro. Só podemos mudar a nós mesmo. Mas podemos ajudar, facilitar para que o outro possa encontrar o melhor dele, responder na sua saúde e não na sua loucura. Portanto, se você fica no seu melhor, evolui, seu casamento terá mais chance de evoluir também, ficar no melhor dele, dependendo, é claro das possibilidades de cada pessoa do casal e da relação em si mesma.

   Ficar sobre as próprias pernas significa, portanto, poder fazer opção. E, portanto, perder coisas, situações. E perder coisas boas, porque as opções mais difíceis são entre coisas boas. E escolher a que mais dá possibilidade de revitalização para si mesmo e para outros envolvidos na situação. Ou, simplesmente, escolher não ter que se encolher e adoecer para não perder a relação, o emprego, a coisa que está te impedindo o movimento de vida, de saúde, de potência.

  Um outro momento que inicialmente é difícil é quando você para de reclamar – “mamãe não faz nada por mim, a vida não me dá nada” – você começa a se sentir responsável pelo seu próprio caminho. Você fica só com você, não tem mais a quem culpar. Você agora é dono do seu sucesso e do seu fracasso. Não é fácil, na vida, perder nossos culpados. Você finalmente entendeu que não tem a quem dirigir as queixas e resmungos impotentes. E que estes só consumem energia inutilmente. A vida não tem SAC (Serviço de Assistência ao Cliente). Você mesmo é que tem que ouvir suas queixas e reclamações, e enfrenta-las. Se der para devolver a mercadoria com defeito, ótimo. Se não, veja aí o que é melhor fazer!

Assumir-se pode implicar em

solidão, uma feliz solidão

   A luta por assumir-se está cheia de armadilhas. Esses dias eu estava fazendo um trabalho terapêutico com uma pessoa, um homem, cuja atitude perante a vida é muito a de estar sempre caído, desanimado, sem forças. Uma atitude oral, de quem teve uma privação grande nos primeiros anos de vida. Então eu pedi a ele que expressasse corporalmente esta atitude e ele ficou realmente dobrado sobre si mesmo, desmontado no chão. Como que sem coluna. A coluna desmontou (e a coluna tem muita ligação com as pernas: se você está nas suas pernas, está na sua coluna também). Aí eu lhe pedi que fosse saindo daquela posição.

  Mas este exercício não é apenas sair da posição. É ir saindo devagar, tomando consciência de cada passo, de cada sentimento que ocorre nesta caminhada na direção do se assumir, na direção da saúde. Ao tentar se levantar, os sentimentos que este homem ia expressando eram de muita depressão e desvalorização, ao mesmo tempo em que culpava os outros pelo seu triste estado. Na infância, culpava pai e mãe. Na adolescência, outras pessoas. E ele, de fato, havia tido uma vida muito difícil, muito massacrada e carente.

  Bem, mas o fato é que, no exercício, chegou um ponto em que ele estava quase de pé – quase saudável e responsável por si mesmo. Mais um passo e estaria na atitude da pessoa assumida e feliz. E aí, ele encontrou o sentimento de que, se ele fosse feliz, perderia a grande arma que tinha contra as pessoas que o tinham feito infeliz. Fracassado, deprimido, ele era a prova viva do fracasso da mãe, do pai, de todos os outros. Parar em pé, no seu caso, naquele momento da vida, era também renunciar ao ódio, aguentar perdoar. E levamos semanas, meses, nesse pedaço. Não era fácil, mesmo porque, em certo sentido, era o ódio que lhe dava força para tocar um pouco a vida. Uma força precária, que logo murchava.

   Mas o fato é que, na passagem para a saúde, ele sabia que ia perder alguma coisa. Perdia aquela posição de coitado, que já era o seu meio de vida. E ia ter de suportar uma mãe muito egoísta, dizendo, quem sabe: “Viu, meu filho, como você deu certo, como eu fui boa mãe? ”. Ele tinha, enfim, que elaborar muitos sentimentos antes de optar pela saúde.

  Parar em pé tem, portanto, momentos difíceis. Momentos de solidão. Porque antes você podia estar muito complicado, mas tinha muita gente ao seu redor, muito barulho, você acusando, sendo acusado. E, quando você se cansa de ficar ali, batendo boca com os outros e com você mesmo, e toma suas decisões e não responsabiliza mais ninguém – aí vai perceber certa solidão. Não é falta de amor, que amor não quer dizer dependência mútua. Pelo contrário, você está melhor, é mais procurado, mais amado, há mais relação de troca, você não está mais dependurado nos outros. Mas a solidão de estar nas próprias pernas é saber que as grandes decisões da sua vida agora são com você mesmo. E aí você começa a descobrir a relatividade das coisas, inclusive da própria terapia. A terapia não é a grande mãe dando na boquinha soluções existenciais. Isso não quer dizer que a terapia não seja útil, não implique na presença de um companheiro com quem se pode conversar, que oferece certos instrumentos ricos. Mas ela não decide, quem decide é você.

 Num primeiro momento, algumas pessoas podem espernear porque o terapeuta se recusa a tomar decisões por elas. O lado criança da pessoa pode espernear. Mas se a terapia progride, ela já não esperneia, não grita. Pode sentir, isso sim, a dor da solidão. A solidão do adulto que já não tem alguém maior para perguntar como é que se faz. Ele pode até trocar informações com os mais experientes. Mas não do tipo “se eu fico enroscado, alguém vem e me salva”. Ou a sensação infantil de que, na dúvida, o papai e a mamãe sabem as soluções. Assumir-se é descobrir que a gente já está do tamanho do papai e da mamãe. O preço desta descoberta é uma certa solidão. A meu ver, mais rica e mais feliz que todas as dependências. Mas é uma solidão.

  A capacidade de parar em pé como ser adulto, criativo e capaz de trocas, está, como vimos, muito ligada à forma como foram resolvidos os primeiros anos de vida. Tanto a mãe prestativa, supereficiente, mas intranquila, que quer que o filho cresça antes da hora, sem tempo de curtir sua infância direito, como a mãe desatenta e desamorosa, deixam suas marcas no adulto. Um pouco dessas marcas quase todos nós temos, em maior ou menor dose. Mãe ideal não existe e sempre ficam umas falhas. O que descrevi até agora são dois tipos particularmente marcados em seu desenvolvimento. Um deles é a pessoa de pernas e pélvis fracas, onde alguns músculos são excessivamente rígidos e outros flácidos, pouco tônus e peito, tórax, desvitalizado, às vezes até mesmo desabado, que vive tudo na cabeça e não parte com objetividade para a concretização dos seus desejos. Seu prognóstico, em terapia é, geralmente, animador.  Na medida em que ele é confrontado com a realidade, num contexto de uma relação terapêutica amorosa e firme, ao mesmo tempo compreensiva e pé no chão, consegue progressos sensíveis. Um trabalho corporal é importante  pois a pessoa toma consciência das questões emocionais no próprio corpo, na postura, no tônus muscular. Além disto, em Análise Rechiana, o terapeuta propõe certos movimentos, que chamamos de Ativação, que reeditam a situação vivida no passado, nas diferentes fases evolutivas, e permite reequilibrar aquela condição.  É uma nova oportunidade de reorganizar a própria história energeticamente.

   Para a pessoa do tipo que chamei de “costas largas e pernas rígidas demais”, aquele que está sempre disposto a aguentar tudo para ser amado ou bem-sucedido, a terapia oferece outros desafios. Ele é o tipo de pessoa que de fato aguenta muito, e mais dificilmente sente a necessidade de tentar sair desta encrenca, pedir ajuda e deixar os outros fazerem a parte deles. Às vezes se diz que esta pessoa tem um complexo de Atlas, de carregar o mundo nas costas.  Corre o risco de passar a vida aguentando, sem se dar o tempo para viver, usufruir, ser cuidado, cuidar-se. Em todo o caso, quero deixar claro que estas marcas de infância, que em maior ou menor grau todos nós trazemos, não têm um caráter de fatalidade a ser carregada pelo resto da vida. Podemos e devemos a nós mesmos tomar consciência destas posturas que são corporais mas estão também expressando nossa atitude diante da vida, nosso caráter. Tomar consciência é o primeiro passo do processo e do projeto de buscar nossa potência, amadurecer como pessoa, evoluir. Depois, deixe que esta luz, esta clareza, te indique o caminho para a transformação, passo a passo, e sempre.

Estou querendo deixar claro que não é só em psicoterapia que estas marcas poderão ser tratadas. Na medida em que a pessoa se dá conta delas e se põe a refletir e a trabalhar suas limitações, pode experimentar um crescimento compensador. O caminho cada um escolhe dentro das suas possibilidades. O importante é esta clara disposição de se olhar e de se trabalhar.

                                                                              Texto publicado na revista

 Psicologia e Comportamento,

 jul/ago/1984; revisto e atualizado em 2018.

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